segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Guerra do Contestado: o conflito segundo a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz - 1957

Tratado como tabu ou com indiferença durante a maior parte do século 20, o conflito que há 100 anos grassava o território contestado por SC e PR, só é conhecido pela sociedade graças ao esforço de alguns pesquisadores que se debruçaram sobre o tema. Ainda assim, é apenas uma manchete para a maior parte da população, que desconhece os pormenores do que realmente aconteceu naqueles dias sangrentos. Muitas perguntas talvez permanecerão sem resposta para sempre.



     Não, a presente postagem não pretende responder às inquietantes questões sobre a Guerra do Contestado que ainda hoje clamam por respostas. Desejamos apenas compartilhar brevemente alguns aspectos de uma obra, publicada em 1957 por Maria Isaura Pereira de Queiroz, 40 anos após o conflito, que pode ter sido uma das primeiras a tentar compreender o que se passou naquele período sangrento da nossa história.
     Não desejamos analisar a intenção da autora, seu viés ideológico ou tecer julgamentos de valor, apenas apresentar dados sobre este trabalho, que pode ser desconhecido de muitas pessoas, mas que já deve ter sido estudado e revisado por pesquisadores que a sucederam.
     Maria Isaura Pereira de Queiroz, nascida em São Paulo em 26/08/1918, é socióloga formada pela Universidade de São Paulo, de quem recebeu o título de professora emérita. Dedicou-se à atividade docente e à pesquisa naquela instituição até 1990. Depois de concluídos seus estudos na USP, em 1951 vai a Paris onde, orientada por Roger Bastide, que já fora seu professor na USP, cinco anos mais tarde obtêm o diploma da Escola Prática de Estudos Avançados (École Pratique des Hautes Études, EPHE) com a tese "Guerra santa no Brasil: o movimento messiânico do Contestado". Encontramos um exemplar desta obra, publicada em francês, à venda num site brasileiro de livros usados.
     O texto no qual fundamentamos nossa postagem não abrange a obra integral, que em sua versão francesa tem 299 páginas. Publicado originalmente em língua alemã no Anuário de 1957 do Instituto Hans Staden de São Paulo, foi republicado, também em alemão, no Almanaque Wille Kalender* de 1958, sendo esta a fonte que utilizamos. O título Die Fanatiker des "Contestado" corresponde a Os fanáticos do "Contestado" e pode corresponder a um capítulo da obra original, traduzido do português por Ulrich Gogarten.
   O texto em questão trata o conflito como sendo político-religioso, de caráter messiânico, e traça alguns paralelos com a Guerra dos Canudos (1896-1897). Há um claro reconhecimento da gravidade do conflito a partir da sua longa duração e do fortíssimo emprego da força militar, incluindo-se, pela primeira vez, o uso da aviação.
     O viés político estaria na questão de limites entre SC e PR e na insatisfação das pessoas do território contestado com a Proclamação da República, pondo fim à Monarquia no Brasil. Esta mudança seria a culpada pelas mazelas pelas quais passavam. A Revolução Federalista (1893-1895), tentativa de deter o avanço dos ideais republicanos na forma como haviam sido determinados, teria contribuído para animar aquela gente a criar uma nova monarquia, governada por um fazendeiro ao qual denominaram imperador, na localidade de Taquaruçu, no estabelecimento ao qual chamaram Quadro Santo.

Rendição de um grupo de caboclos

     Explora detalhadamente o papel messiânico dos chamados monges junto a um povo esquecido numa região abandonada: eram seu sacerdote, seu médico, seu conselheiro e, no momento certo, seu redentor. Informa que os jornais de Florianópolis, entre 1890 e 1910, citam a existência de pelo menos seis monges e defende que podem ter sido muitos mais. Diz ainda que o monge José Maria, surgido no final de 1911 ou início de 1912, se anunciava como sendo irmão do monge João Maria, de atuação conhecida no período 1889-1893. O texto sugere que o conflito armado era visto pela gente do território contestado como uma guerra santa nos moldes do que conhecemos atualmente no âmbito do Islamismo: o gentio precisa ser destruído.
     Descreve o dia-a-dia da vida nos redutos, a hierarquia existente, as atividades religiosas, o trabalho e o lazer, dá nome a algumas localidades onde existiram redutos e cita os principais personagens. Além dos monges, também Teodora, que se comunicaria com eles, e Adeodato, seu último líder.
     A lacuna fica por conta das estatísticas, ainda que a certa altura mencione a cifra de 10 mil pessoas assentadas nos redutos. As batalhas travadas são descritas de forma econômica, bem como o número de mortos de ambas as partes. Curiosa é a omissão total, ainda que o tema tenha sido tratado em outra parte da obra, da construção da ferrovia e da concessão de terras para exploração de madeira para a empresa americana responsável pela construção da ferrovia, aspectos hoje entendidos como vitais para a compreensão do conflito.
     Para uma melhor compreensão do pensamento da autora seria necessário conhecer a obra em toda a sua extensão. Evidentemente na atualidade podem existir fontes das quais a autora na década de 1950 não podia dispor, como arquivos militares, abertos mais tarde para o crivo de pesquisadores. Ainda assim, trata-se de um texto muito interessante e que pode dar ao leitor, mesmo passados quase 60 anos de sua publicação - textos antigos e atuais não se excluem, se complementam -, uma boa visão, ainda que parcial, do triste e sangrento episódio que teve espaço em nosso Estado há um século.
     Triste mesmo é olhar para trás e constatar que tudo aquilo provavelmente poderia ter sido evitado por meio do diálogo e de ações sociais, obrigações governamentais, voltadas ao respeito àquele povo esquecido. O tema é complexo, mas diz respeito à nossa história e não devemos tratá-lo com indiferença - bastam os erros que foram cometidos no passado.
     
*Almanaque publicado anualmente em Blumenau durante mais de três décadas por Otto Paul Wille, imigrante alemão chegado ao Brasil em 1904.

Fonte - texto pesquisado: Almanaque Wille Kalender 1958 - Blumenau/SC - p. 217-241
Fonte - dados biográficos da autora: SIMIONI, A. P. C.... [et. al.] (orgs.). Criações compartilhadas: artes, literatura e ciências sociais. - 1ª ed. - Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014 - Disponível em www.books.google.com.br
Imagem: Claro Gustavo Jansson - Disponível em www.unochapeco.edu.br

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